A menina do ABC paulista

Nasci em São Bernardo do Campo em 1978, sou filha do ABC Paulista e de migrantes nordestinos em São Paulo. Cresci em uma escola que os meus amigos e amigas riam de mim e me criticavam quando usava a camiseta com o desenho do Henfil, em 1989, nas primeiras eleições de Lula para Presidente, com a seguinte frase: "A esperança está presente, Lula Presidente!" Lula demorou ainda muitos anos para chegar ao poder, ele era trabalhador, metalúrgico, nordestino, não tinha ao seu lado o poder econômico dos grandes grupos de empresários, latifundiários e da mídia brasileira, foi construindo sua militância e liderança política com a base. Concordo que em muitos momentos teve que fazer certas alianças que custaram muito caro a todos nós, concordo que recuou em muitas políticas que transformariam estruturalmente o nosso país e que seria impossível serem levadas até o fim por conta das pressões desse mesmo grupo que agora o manda prender injustamente.
Ainda assim, as transformações na sociedade brasileira que vimos nas universidades, na dimensão político-econômica e na sociedade em geral são inegáveis, são inclusive objeto de prêmios e de pesquisas internacionais. Ver hoje Lula sendo preso é uma dor imensa, por mim, pelos meus filhos, pela memória de tantos que morreram e lutaram durante a ditadura para que tivéssemos um estado democrático de direito. Sinto ainda mais por ver tantas pessoas aplaudindo esse triste desfecho. Os maiores especialistas e juristas do país e do mundo, que são respeitados tanto por sua competência teórica, quanto ética afirmam que o que está acontecendo com Lula é um ataque à democracia brasileira em proporções desastrosas que serão estudadas e sentidas pelas próximas gerações. Não ter consciência dessa dimensão política e histórica é sujar as mãos de sangue. Todos nós pagaremos o pato, e as próximas gerações também. Por um instante me senti novamente como aquela menina na 5ª série, que sofria racismos e preconceitos de todos os tipos tão injustamente, que morava no bairro pobre e afastado do centro de Santo André, aquela da qual riam do cabelo, da herança nordestina e quando defendia uma sociedade mais justa e igualitária. Me senti novamente violentada por pensar diferente da maioria dos meus colegas com uma origem e classe social diferentes das minhas. Violentada por viver em um país no qual as pessoas são presas simplesmente por defenderem um projeto político, econômico, social, civilizatório e cultural diferente daquele das elites políticas e econômicas desse país, que estão no poder há séculos. Senti medo. Por mim, pelos meus, por todos nós, senti medo por ser uma mulher negra que tanto luta para ter voz e lembrar do que aconteceu com Marielle Franco, executada por defender os que mais sofrem com esse golpe e a intervenção militar na favela. Fechei os olhos e respirei fundo. Lembrei da esperança que tantos companheiros e companheiras que lutaram e morreram nesse país transmitia a todos nós mesmo quando corriam risco de vida. A vida só tem sentido se sabemos pelo que lutamos, se sabemos quem somos. Tenho muito orgulho da minha trajetória, não sou mais uma menina, sou uma mulher, sou uma professora, uma doutora, trabalho em uma universidade, estudo, pesquiso, formo pessoas, tenho a mesma consciência de classe, racial e étnica de quando tinha 11 anos.
Vou continuar lutando, sei que estou do lado daqueles que mais sofrem nesse país: dos negros/as, dos pobres, quilombolas, indígenas, sem-teto, mulheres, trabalhadores, comunidade LGBTTI, nordestinos, assentados, ribeirinhos, caiçaras, deficientes, da juventude negra cotidianamente assassinada, das crianças que trabalham, dos movimentos sociais, do meu povo. No futuro olharei para os meus filhos, netos e bisnetos e direi a eles que não fui omissa, que reconheço as minhas origens e a minha identidade, direi a eles que estive ao lado daqueles que clamam por justiça e liberdade há séculos, que sou e sempre serei defensora dos direitos humanos. E desejo que, como em 1989 não percamos a fé, pois tudo isso que está acontecendo hoje é para evitar novamente que a esperança esteja presente. Lula Presidente.

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