A trilha do herói ou como ensinar às crianças sobre o medo, a força , a democracia e a liberdade?

Quando recebi a notícia de que o Bolsonaro havia ganhado a eleição e seria o nosso Presidente, estava com meus quatro filhos. Dentro do carro eles começaram a me perguntar: "Mãe, nós vamos ter que mudar de país?" "Mãe, nós vamos ter que mudar de casa porque você vai ganhar menos?" "Mãe, você vai morrer?" Essa é a dureza de ser mãe, você não tem tempo de sentir medo, de viver seu próprio luto ou de ser confortada, você tem que confortar! Virei para eles e disse que não, que precisávamos ter calma e fé, que não iríamos abandonar o nosso país, que precisávamos de tempo para analisar como as coisas iriam ficar, para resistirmos. É muito importante nesses momentos que as crianças se sintam seguras, protegidas, mesmo em situações extremas e de barbárie. Exatamente por isso que enquanto pedagoga, sempre acreditei que a verdade e os fatos tem que ser ensinados para as crianças, sempre respeitando a sua faixa etária, é claro, mas sem mistificar ou esconder a realidade. 
Lembro na passagem da história do Princípe Hindu, Sidarta Gautama (o Buda), cuja família desejava que ele vivesse no palácio cercado somente de riquezas, do que é belo, bonito, sem conhecer a morte, a velhice, a violência, o feio e as coisas do mundo. Quando ele descobre a mentira na qual vivia, a verdade o deixa tão estarrecido e comovido, que ele abandona o seu luxuoso palácio e sua família para seguir os passos da mendicância, do jejum, da meditação. Buda alcança a iluminação espiritual, tornando-se seguido, até os dias de hoje, por discípulos do mundo todo. 

Nos grupos tradicionais indígenas, africanos e afro-brasileiros, as histórias e os mitos, as narrativas por meio da oralidade, não são apenas meros recursos de linguagem, elas têm o poder de fortalecer psíquica e emocionalmente a dimensão existencial e ontológica do humano, elas criam sentidos à vida, respondendo e trazendo alento para as nossas questões mais profundas: "De onde viemos?" "Para onde vamos?" "O que é a vida?" O que é a morte?" "O que estou fazendo nesse planeta, nessa terra, nesse país? " Exatamente por saber disso, que resolvi assistir com eles novamente a saga de "Star Wars" que trabalha de forma exemplar a jornada do herói.

Tentei analisar junto com eles que o Medo é um dos piores sentimentos que podemos ter ou nutrir. No filme, o Medo é o principal responsável por conduzir Anakin Skywalker para o lado negro da força. Ele teme tanto perder o que mais ama, Padmé, sua esposa e a mãe dos seus filhos, que se torna o responsável por sua morte.
Como Mestre Yoda tão bem afirma: "O medo é o caminho para o lado negro. O medo leva a raiva, a raiva leva ao ódio, o ódio leva ao sofrimento."
Foi importante fazê-los perceber que quando somos movidos pelo medo, nos afastamos dos nossos caminhos. Ao afastarmo-nos dos nossos caminhos, vamos deixando de ser nós mesmos, vamos perdendo o equilíbrio psíquico e emocional e a nossa força, esquecemos da nossa ancestralidade e história. O medo leva ao pânico e o pânico à barbárie.
Infelizmente todos nós iremos viver um período tenebroso e de violência exacerbada em nome de Deus, da Pátria, da Ordem e do Progresso. A história já nos ensinou para onde isso leva e demora um tempo para que todos possam perceber o equívoco e para onde o seu próprio medo o conduziu. Muitos morrerão e sofrerão até que percebam, pois como no filme a própria senadora Padmé diz: "Então é assim que a liberdade morre… com um estrondoso aplauso."
Pois então, meus amigos, perdemos a Democracia e a República e o Lado Negro da Força vem nos impondo o seu Império, temos muitos Darth Vader a enfrentar. 
Nesses momentos percebemos que todo nosso esforço em manter as crianças super protegidas e vivendo em uma bolha cor de rosa, não deu certo. Elas precisam crescer sabendo o que é liberdade, democracia, ética, respeito e direitos humanos. Elas vão ter que estar saudáveis, inteiras e preparadas para os novos desafios que esse cenário fascista e anti-democrático apresenta. Não adiantará mais criá-las em parquinhos emborrachados, com filmes da Barbie ou em condomínios fechados para as proteger, elas terão que saber o que fazer quando um amiguinho aparecer com a arma do pai na mochila da escola, quando o pai do amigo negro dela da escola for espancado, quando um tio distante gay morrer ou uma menina for estuprada. Nós não conseguiremos deter ou esconder a realidade que saltará a frente de seus olhos de maneira cada vez mais brutal, e não adianta se esconder ou temer, pois como vimos na saga citada, Luke Skywalker só consegue vencer e usar a força que está dentro dele quando vence o próprio medo, quando derrota o maior dos inimigos que é aquele que está dentro de nós. Só assim ele redime o próprio pai, Darth Vader, de tanto ódio e da destruição que causou. Desse modo as narrativas e a jornada do herói se completa, assim como nos demonstra a saga de um outro herói, Jesus Cristo, que teve que vencer os medos e as tentações durante 40 dias no deserto, controlando os pensamentos e a dúvida, provando a sua fé. 
Recontar essas narrativas possibilita às crianças e a nós mesmos sabermos que, como diz um provérbio português: "Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe". A vida é feita de círculos e a circularidade é importante e vital para as transformações. As novas crianças e as novas gerações vai chegando e transformando a vida. Os heróis sempre existirão! Inúmeras Princesas Léias e Lukes encontrarão força na Resistência e nos Exércitos que buscam a paz e a luz. O importante é eles aprenderem qual é o verdadeiro lado da força, qual é o verdadeiro caminho de luz e paz. E para isso é preciso coragem e um amor que nunca falha dentro de si para estar à frente dessa batalha do amor! Qua a força esteja conosco!

“Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.”JOSEPH CAMPBELL - O Poder do Mito

Essa foi a forma que eu encontrei para trazer um pouco de paz ao coração das minhas crianças, não sei se é a correta, mas é a que fala ao seu imaginário e toca a sensibilidade de cada um.
E no lugar do medo nos reconectamos à esperança!

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